Emio — The Smiling Man: Famicom Detective Club; quando um jogo extrapola sua mídia

5 dias atrás • Nintendo Boy • Via CoelhoNews.com: Seu agregador de notícias Nintendo

Revisão: Ivanir Ignacchitti

Acredito que, nos discursos ao redor da mídia de jogos digitais, exista um viés de estilo que prejudica a percepção dos objetos de estudo. Primeiro, é muito raro superarmos o olhar fetichizante ao redor de obras, muito por conta da própria gênese dos jogos enquanto produtos (não há dúvidas de que o próprio processo de desenvolvimento de jogos é pautado por isso), acarretando em um espaço em que as produções não são aproveitadas pelo que apresentam, mas sim pelo que competem.

Em seguida, há indubitavelmente uma recusa, por parte do público geral, de experiências novas, em grande parte alimentada pela cultura de hype construída artificialmente por investimentos milionários em marketing. Com o fluxo de propaganda pura e simples, mas disfarçada de premiação e celebração, a percepção de mercado é sempre pautada pelo consumo massificante. Esses elementos, dentre outros, constroem tal viés.

Na expectativa de se maximizar lucro, as produções passaram a se pautar em criações que se mostraram enquanto enorme sucesso comercial, e deixar de lado seu status de pioneirismo e inovação na mídia. Com o passar do tempo, a dita indústria AAA (ou seja, produções com alto valor de investimento) priorizou, em sua concepção, a cinematografia enquanto mídia a ser espelhada. Apesar de render belíssimos frutos sem dúvidas, e de fazer sentido pelo paralelismo imagem-movimento, acredito que a priorização de uma tentativa de se tornar o mercado de filmes tenha reduzido o fator de maior valor do jogo: o da interação.

A Inspiração Literária

Apesar de contra-intuitivo, talvez seja na literatura onde a mídia deveria buscar suas estruturas basilares. Ao menos é isso que Emio: The Smiling Man, o novo título da série Famicom Detective Club parece apontar. Isso porque, embora não deixe a relação de imagem-movimento de lado, o título busca na literatura policial o preenchimento de lacunas, a possibilidade de interpretação e a pura imaginação que possibilita um livro ser mais que folhas ao léu.

A maior prova disso, ao meu ver, é a percepção geral do título. Quando olhamos para jogos de um diretor como Hideo Kojima, vemos críticas enfatizando seu talento enquanto cineasta: o paralelismo com o cinema enquanto ponto de elogio. Em Visual Novels e ADVs como Famicom Detective Club, contudo, vemos o termo “livro” acompanhado de uma denotação negativa, descartável. Novamente, esse paralelismo parece refletir a lógica de mercado na qual jogos digitais se inserem (cinema, assim como jogos, são alimentados por lançamentos, enquanto o mercado literário valoriza, ao lado de lançamentos, novas edições, traduções e textos críticos), e por isso é sempre interessante olharmos de perto jogos produzidos e financiados por empresas de grande porte que vão na contra-mão das tendências de seus pares.

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Honrando o legado de seus antecessores, clássicos basilares do gênero, Emio — The Smiling Man ja pode ser considerado um dos melhores ADVs do Switch.

Tomo a obra, ao invés de outros ADVs, porque acredito que ela é capaz de cruzar as três mídias: jogo, livro e filme, extrapolando-as e criando algo inédito. Além disso, trata-se de uma obra experimental e voltada a um nicho com um investimento significativo de uma grande produtora, contrariando as regras de mercado a respeito da valorização do retorno financeiro. Começamos do princípio: Emio: The Smiling Man é um novo título de uma série em hiato há mais de 35 anos, criada por Yoshio Sakamoto e co-produzido desta vez por Kaori Miyachi.

A partir de entrevistas divulgadas pela própria Nintendo, nota-se que o jogo foi uma consequência natural dos remakes dos primeiros títulos, lançados em 2021 e desenvolvidos pela MAGES., também responsável pelo desenvolvimento do novo título. Sakamoto, em poucas palavras, inspirou-se ao revisitar suas antigas criações e, após considerável amadurecimento criativo, escreveu uma história mais profunda, tendo auxílio de uma perspectiva mais jovem de Miyachi. De suas referências, o autor enfatiza filmes de terror e suspense, mas não ignora que apenas foi capaz de escrever os primeiros jogos por conta de sua bagagem literária construída ao longo do tempo. E aqui reside a beleza do processo criativo da obra.

Emio foi beneficiado por uma série de fatores. Primeiro, sua criação foi orgânica, sem pressão de executivos. Segundo, Sakamoto encontrou uma equipe que ansiava participar do projeto, não se tratando de desenvolvedores contratados apenas para entregar um projeto qualquer. E por último, a dupla recebeu uma espécie de carta branca, resultando em um jogo atípico dentro dos padrões da Nintendo (justificando inclusive a classificação indicativa elevada) e com orçamento o suficiente para entregar de forma plena a visão do diretor. Assim, encontramos no título uma história de mistério: uma morte suspeita traça paralelos com crimes em série que ocorreram 18 anos antes da trama, envolvendo mortes de jovens desamparadas e uma figura mitológica, um homem que, portando uma sacola de papel com um sorriso nela desenhado, estrangula suas vítimas e as confere um sorriso póstumo cobrindo suas faces com a mesma sacola.

Enquanto jogo, o sistema é o mesmo de seus antecessores, envolvendo evoluções naturais. Porém, a sua base é profundamente romancesca. A prioridade é o texto, e o fator jogo está no input que jogadores devem fazer para encontrar a próxima janela de texto. O interessante é como os botões de ação foram criados, estabelecendo uma semântica quase passiva: “escutar”, “observar”, “pensar”… assim como um livro, o jogador/leitor serve como canalizador de informações, que são tratadas de forma interna.

Sartre assim caracteriza a literatura em prosa, por exemplo: o leitor age como receptor de um texto fixo, objetivo e imutável, mas é em sua percepção, ou seja, na capacidade de imaginação, que as lacunas são preenchidas, detalhes são reestruturados e o livro, enquanto resultado final, é criado. Algo similar ocorre em Emio, porém com mais ferramentas fora o texto. Aqui, a música e os visuais causam grande impressão, além da competente dublagem que causa diferentes sensações ao longo da narrativa. A imersão completa dos elementos, ou seja o mesmo escutar e observar do jogo que são as ações reais do jogador, nos causam o pensar, de fato, enfatizado pela sessão de revisar no final de cada capítulo, que simula a sensação de quando fechamos um livro e sintetizamos as informações adquiridas.

Assim, o paralelismo com a literatura enfatiza o aspecto interativo do jogar, ao invés de colocar o jogador em um papel ocioso de mero espectador. Contudo, Sakamoto não descarta o valor no paralelismo com a arte do imagem-movimento. Por isso, no epílogo, somos apresentados a uma impressionante e belíssima sequência animada — um curta que encerra a obra. Tal epílogo parece simular as tendências mercadológicas, mas na verdade, em conjunto com a experiência descrita acima, oferece algo a mais: uma genuína reflexão. Mas analisemos, primeiro, o uso de cinematografia na mídia de jogos digitais.

O Aspecto Cinematográfico

Se o paralelismo com a literatura enfatiza a interação, o paralelismo com cinema enfatiza o papel de espectador. Ao invés de nos colocarmos no lugar de um personagem, passamos a observá-lo enquanto outro agente, separado da interação promovida pelo jogar. Inclusive, quando não bem utilizada encontramos a chamada dissosicação ludonarrativa, ou seja, quando o que fazemos no jogo não reflete o que vemos na história.

O supracitado Hideo Kojima, por exemplo, muito bem soube criar as associações na série Metal Gear Solid porque seus exageros visuais batem bem com as extrapolações de gameplay, e passamos a querer ver de perto as ações de Snake, não necessariamente por nos colocarmos em seu lugar, mas porque queremos acompanhar a narrativa. Os jogos são muito mais objetivos; não há uma necessidade de preencher lacunas subjetivas (o que pode até causar certo atrito com os jogadores já que as histórias não são tão diretas ao ponto assim), mas o efeito desejado é atingido com graça.

Em Emio, a separação da sequência cinematográfica do jogo resulta em um efeito que, particularmente, acredito ser bem único na mídia. Ao invés de termos a experiência de interação fragmentada por inserções visuais, temos primeiro um encerramento da nossa participação na obra e, depois, um capítulo à parte que nos mostra uma história paralela. E aqui, estamos observando as ações de um outro, ou seja, não há espaço para interação porque tais ações ocorrem independente da nossa existência enquanto jogador. Somos jogados de um espaço de imersão para observação, e no término da sequência não temos uma conclusão objetiva, e sim uma pergunta de juízo, valores e completamente subjetiva, endereçada diretamente a nós, espectadores.

Convite à Reflexão

Acredito que, assim, a obra se eleva enquanto um jogo que extrapola sua mídia, tanto no sentido de mercado quanto no sentido de percepção. Independente de suas referências, o jogo passa uma mensagem não só em sua narrativa, mas na sua experiência de jogar, resultando em uma fulminante conclusão que nos causa algo extremamente perigoso aos olhos do mercado: a reflexão.

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